terça-feira, 3 de setembro de 2019

FOGARÉU

acendi um fósforo
o álcool já estava lá por si só
começou com uma faísca
como quem não daria em nada
e do nada

labaredas
tão enormes que sequer conseguia enxergar
o que era eu
e o que era
ela

eu via as chamas
que se enlaçavam num monte de coisa que ali estava

as cortinas pegaram fogo primeiro
os livros aos poucos deixavam de ter
tornavam-se ser
eram só memória
memórias essas que a gente nem queria mais
eram parte do que havíamos sido
mas não de quem somos

o fogo que antes estava na sala
agora tomava conta dos quartos
rasteiro
e crescia
CRÊscia
crescIA
tomando conta de tudo

aos poucos o banheiro
antes tão frio
agora era só quentura
a água já não era capaz de apagar
não havia água suficiente
pra sanar tamanho
fogaréu

a sala
os quartos
o banheiro
a cozinha
até a escrivaninha
tudo

tudo pegou fogo

era ardência
fervor
brasa
chama
lume

é ela
o álcool
e eu
o fósforo

que delícia
de fogo
fecho os olhos juntando meu dedo no dela
naqueles pedidos bobos mas cheios de vontade
pedindo a seja lá quem for
que esse fogo
nunca
se apague.

3 de setembro de 2019.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

CARTA PARA A EU DE TRÊS ANOS ATRÁS

menina,
você tá se tornando uma mulher. 
são tantos sonhos, né?
tanta vontade de fazer diferente.
de se atirar no certo.
como você foi parar na escuridão?
onde foi parar a sua luz?
onde foi parar
você?
eu queria mudar teu caminho nesse dia. você trabalhou tanto o dia inteiro, não vai não. não, não coloca essa tua blusa da Alice, você não vai conseguir usar depois. não, não, fica em casa. por favorzinho. vai não. encontra seus amigos  sim. deixa esse encontro pra lá. eu queria tanto ter te feito ficar em casa. você tava tão cansada... e sem perceber já trocava os amigos pra estar com ele. trocava as noites e aos poucos tuas risadas fáceis. trocava teu bar preferido com a tua melhor amiga; as noites em família. eu queria ter conseguido te fazer ficar em casa. você já ia viajar, pro seu cantinho, pra sua Bahia,pra quê se meter nessa história? nesse enlace? e vai doer. você ainda não sabe... mas toda essa alegria vai acabar. e vai doer tanto que você vai implorar por nunca ter entrado nisso. e durante anos não vai conseguir sair... vai achar que a vida não tem graça sem ele, mas é tão pior com, não é? eu sei. você vai chorar tantas noites sozinha e ninguém vai ver. mas eu te juro, de manhã você vai estar viva. e você precisa estar bem pra viver. você é tão forte e só vai se dar conta disso quando sair disso tudo. você nunca desistiu de você mesma, sabia? mesmo remendada, exausta,perdendo peso, ainda assim, você foi. você trabalhou incansavelmente. você foi pra faculdade e terminou ela. e se eu pudesse mudar uma coisa eu teria te feito não perder sua formatura. vai doer estar sozinha nesse dia. vai perfurar seu coração, mas eu juro, você vai passar por isso também. seu aniversário não será comemorado por anos; você vai dizer que não se importa com essa data, mas vai chorar sozinha novamente. você acha que é fraca, mas foi tua força que te salvou! e por fim, eu queria tanto te embalar no meu colo e te dizer: não, ele não vai se matar. ele não vai fazer mal algum à ele mesmo, mas se você parar pra observar, quem morreu foi você. 

*com esse texto eu desejo que você, mulher,tenha a força necessária pra passar por isso. juntas somos fortes! você vai conseguir, eu juro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

VOCÊ JÁ VIU A MORTE DE PERTO?

Você já viu a morte de perto? Eu já, duas vezes.

A primeira, levou uma das pessoas mais verdadeiras que já conheci. Doce do jeito que era, se escondia atrás de uma casca e só quem conhecia profundamente seu coração sabia a fragilidade que nele havia. Nada disso impedia a força que existia nele, uma das pessoas mais fortes que já passaram pelo meu caminho. Me ensinou com amor coisas que estão entrenhadas em mim até hoje, mesmo depois de tantos anos - e certamente vão morrer comigo. Num dia ele me prometia voltar para um lugar que era nosso; e noutro, se foi. Sem abraço, nem beijo, nem tchau. E ainda assim, permanece aqui. Ele vive num lugar que morte alguma poderá arrancar: dentro de mim.

Já a segunda vez, eu podia ver o amor vivo na pessoa. Havia nascido para juntar-se à mim e se houve outras vidas certamente nos reencontramos em todas elas. Eu sempre fui imensa em tudo que fiz, e se me dei cem por cento não recebi o mesmo, mas ainda assim de alguma forma me bastava. Meus olhos foram-se abrindo aos poucos até que veio a morte, mais uma vez levando alguém o qual fazia meu coração pulsar, depois de tantos anos eu já não me lembrava do gosto amargo que havia nela. Nessa sensação de perda irreparável.

Mas diferente da primeira vez, a pessoa permanece viva por aí. A diferença foi em tê-la perdido em vida. Um belo dia eu senti: morreu. Em mim e em tudo que eu planejava. As palavras já não soavam com verdade - se é que soaram algum dia - e os atos nunca condisseram com as palavras. Isso me faz questionar: como pode morrer algo que jamais existiu?

Enquanto a morte do corpo nunca foi capaz de apagar uma das pessoas que mais amei na vida, a vivência foi capaz de matar alguém que ainda vive
mas não mais
em mim.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A CAIXA

Peguei todo o nosso sentimento e transformei em algo palpável. Eu carregava todo o nosso amor naquela caixa. Eram momentos incrivelmente bons e outros dolorosamente ruins, mas eu jamais pensei em largá-la.

Ela era aquilo que tínhamos de mais valioso, todo o nosso puro sentimento carregado um pelo outro. Uma caixa imensa, às vezes pesava um pouco mais, às vezes pouco menos. Mas sempre pesava, afinal, havia tanto de nós ali dentro. Essa caixa era repleta de memórias, podia sentir a brisa de um dia frio na varanda ao seu lado.

A caixa começou a pesar mais que eu poderia aguentar, mas eu sempre aguentava. Eu fazia manobras para que ela pudesse ficar mais leve; sorria toda vez que o peso era ao ponto de chorar; carregava essa caixa com todo cuidado que eu pudesse ter.

Um dia, carregando minha caixa pra cima e pra baixo, já curvada, com olheiras de quem não dormia e cara de quem não comia, uma amiga perguntou: - Quê isso?
- Minha caixa.
- Que caixa, menina? Não tem nada aí.

E aí me dei conta: eu carregava um peso tão grande e sequer percebia que nada havia. Era em vão. Carreguei nossa caixa sozinha. E o que havia dentro era a enorme vontade daquilo que jamais existiu.

Chega.

Joguei tudo no primeiro lixo que encontrei. Nunca mais carrego um peso que não é meu.